Blog

COMO COMEÇOU A VERDADEIRA VIAGEM INTERIOR

#01 Diário de viagem

Como começou a verdadeira viagem interior

Em Fevereiro de 2005, como voluntária na União Budista Portuguesa, entregaram-me a tarefa de organizar a vinda ao Porto de um monge tibetano que viria a ser o meu professor ou mestre principal (chamado na tradição budista de lama-raiz). O lama-raiz orienta a prática e o estudo de um aluno de forma próxima e personalizada – é como um mentor que orienta o percurso de quem quer aprender ou estudar o budismo.  Diz-se que quando o aluno está pronto, o mestre aparece e realmente este encontro iria mudar a minha vida para sempre.

Em Julho, depois de 2 voos e 22 horas de autocarro chegava ao destino.

A Saga da Viagem aos Himalaias

Finalmente cheguei a porto seguro!

O aeroporto em Frankfurt foi um stress. Para além de ser enorme, a simpatia e disponibilidade para esclarecer o próximo é “keine” (ou nenhuma).  Foi a primeira vez que viajei sozinha, para fora da Europa numa aventura que iria mudar o meu mindset para sempre.

Felizmente, tive seis horas de escala, portanto, tempo suficiente para encontrar a “gate”. Alemão não é o meu forte, mas com uma ajuda do inglês à mistura lá consegui safar-me – quem tem boca, chega onde quer. O que é certo é que caminhei por mais de 30 minutos dentro do aeroporto. Finalmente, cheguei à zona dos países asiáticos – Índia, Paquistão e afins – que ficava num extremo do aeroporto, nos arrabaldes mesmo. E conforme ia avançando e mudando de zona, fui percebendo a diminuição gradual na qualidade das instalações e equipamentos. Creio que, no meu caso, até foi pedagógico, ajudou-me na adaptação da mente para o choque cultural que viria a seguir.

A sala de espera parecia um apeadeiro de província, os poucos bancos disponíveis estavam ocupados por homens. Sim, em países onde a discriminação de género é uma tradição vincada, mulheres grávidas com crianças ao colo ficam de pé ou sentam-se no chão, enquanto os maridos se estiram ao comprido nos bancos. No momento do embarque, os passageiros prioritários também são só os homens. Tive que respirar fundo e contar até mil para não perder a calma com tamanha falta de civismo aos olhos da nossa cultura. Foi aqui que comecei a pôr em prática duas das seis perfeições do treino da mente budista – paciência e tolerância.

O avião da Air India era enorme: dois andares. A tripulação muito simpática, mas um pouquinho “fora do prazo”. As senhoras hospedeiras em Portugal já estariam na reforma. Mas passaram a vida a dar-nos de comer. A simpatia só era ultrapassada pela elegância e suavidade com que se movimentavam pelos corredores, com os saris lindíssimos. Conseguem imaginar? Movimentar-se em corredores exíguos com aqueles panos todos…

A chegada ao aeroporto em Delhi foi extremamente pacífica. O aeroporto é limpo e organizado e, com o meu cartão de visita, foi tratamento VIP assegurado! Nunca pensei que chamar-me Sónia e ter nascido no dia em que nasci, desse tanto jeito! Foi meio caminho para passar pelas autoridades e para receber uma “friendly help” no câmbio. Para quem não sabe, tenho o nome da filha de Gandhi e nasci no mesmo dia que Mahatma Gandhi (cuja foto vem em todas as notas indianas).

Á saída do aeroporto, os meus guias tibetanos já estavam à minha espera com um cartaz escrito a marcador “Ms. Sonia Pixoto”. Foi um alívio quando os vi. E mais contente fiquei quando eles disseram que a minha amiga já estava no hotel, tinha chegado no voo da meia-noite. Tratava-se de uma portuguesa, do Algarve! Imaginem a coincidência, após milhares de quilómetros de distância, a minha colega de viagem é portuguesa.

A viagem até à casa tibetana onde fiquei hospedada em Delhi foi um tour turístico, pois os tibetanos conduzem muito devagar e sempre no meio das faixas. Ah sim, os condutores na Índia não usam piscas, para ultrapassar encostam-se e começam a buzinar para assinalar a intenção e só param após concluir a manobra. Podem imaginar a barafunda e barulheira que é! Depois de se enganarem umas 4 vezes, lá chegámos, com o dia a amanhecer.

MUITO lixo,  MUITAS vacas, MUITOS cães e corvos, mas o cheiro nem é assim tão mau. Claro que ao passar por lixeiras a céu aberto, é de morrer! Mas não há nada que um lencinho no nariz não resolva. Quando te preparas para o pior, o impacto com a realidade torna-se mais suave.

Bom, depois da manhã bem dormida e banho tomado, conheci a Jacinta. Os nossos guias foram buscar-nos para apanhar o BUS. E aí começou a parte surreal da coisa. O BUS era assustadoramente imundo, sebento, a cair de podre, cheio de turistas europeus e indianos.

Lá nos sentaram juntas, a pedido dos nossos guias. Para isso, desalojaram 2 senhores nativos, no meio de berros e ameaças do senhor condutor. Respirei fundo, entrei em meditação e deixei fluir. Mantive-me assim por 22 longas horas que foi quanto durou a experiência no submundo dos transportes DELUXE indianos. Deixo à vossa imaginação, como viajam os comuns mortais indianos diariamente. Este choque fez-me valorizar os transportes públicos que temos em Portugal.

As paragens em dhabas, restaurantes de beira de estrada, barracas no meio do nada como alternativa às nossas estações de serviço também foram uma experiência hilariante. Quando uma companheira de viagem israelita (quase à beira de um ataque de nervos) perguntou pelas toilettes, o senhor dono do estaminé informou-a com o ar mais solene “Go out, turn right, and straight, there is OK”. Como podem imaginar, ela voltou mais depressa do que foi, com um ar horrorizado, aniquilando qualquer esperança que nós, os outros elementos femininos, ainda tínhamos de ver um WC. Aliás, sanita propriamente dita só voltei a ver no hotel em Manali!

Quando amanheceu, a viagem tornou-se mais agradável, pois a paisagem é estonteante: desfiladeiros, quedas de água, o rio, a vegetação, não esquecendo nos intervalos o susto da condução tipicamente indiana. Estradas mínimas onde só passa um carro de cada vez, ravinas assustadoras… Agora imaginem como é quando se cruzam autocarros, camiões, etc., sempre com a música de fundo das buzinadelas.

A Índia, que país incrível. Primeiro estranha-se (e muito), depois entranha-se.