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QUEM ANDA À CHUVA, MOLHA-SE☔

#03 Diário de Viagem

QUEM ANDA À CHUVA, MOLHA-SE

Photo from Pixabay by Bhuwanpurohit

“I know you!

A recepção do Lama foi fantástica. Reconheceu-me logo, apesar de nos termos conhecido há 5 meses e convivido por escassos três dias, durante a sua passagem por Portugal. Eu fui mais uma das largas centenas de ocidentais que conheceu no seu périplo pela Europa.  

Quando o ensinamento terminou, o Lama saiu e ficou à nossa espera no corredor para nos cumprimentar. Estendeu a mão e cumprimentou-nos um a um, com um aperto de mão ocidental. Quando me viu, sorriu e eu estendi a mão também. E ele disse: “I know you, sweet girl from Portugal.” Para meu espanto, abriu ainda mais o sorriso e deu-me um abraço apertado. E convidou-me para tomar chá e contar-lhe novidades de Portugal. Valeu a pena ser a última a ser cumprimentada.

Época das Monções

Aqui chove a cântaros; não, a baldes mesmo! Há 2 dias que chove ininterruptamente. E eu de havaianas no pé! Pensei que seria passageiro, mas como as previsões apontam chuva até sábado, comprei hoje umas galochas e um guarda-chuva para enfrentar a época das monções. Sinto-me um verdadeiro semáforo, mesmo no meio das vestes coloridas indianas não passo despercebida. Tenho uma capa impermeável amarela, galochas azuis-turquesa e um guarda-chuva vermelho. É oficial: abandonei de vez, os vários tons de cinzento do meu tempo de executiva.

Em Manali, aprendi a aceitar a chuva. Não sei explicar o que aconteceu interiormente. Não passei a gostar da chuva, acho que deixei de a rejeitar. Aprendi a aceitar que a chuva me caísse naturalmente pela cabeça abaixo, sem correr, nem acelerar o passo. Mesmo sendo a chuva das monções, torrencial e ininterrupta. Aprendi a apanhar com a chuva na cara, sem medo e quase apreciá-la. Foi libertador, deixar de fugir da chuva.

Experimentem a sensação de simplesmente andar à chuva. 

Quem anda à chuva, molha-se e… é tão bom! 

Em Roma, sê romano. Na Índia, sê indiano.

O que não é tão bom é a humidade que se entranha até aos ossos. A roupa e o calçado não secam. Comecei a perceber a técnica dos indianos e dos estrangeiros residentes. Quando chove, arregaçam as calças e mantêm os chinelos de dedo. Quando chegam a qualquer lado, tiram os chinelos (até porque é tradição entrar descalço) e secam as pernas e os pés com um trapinho – é bem mais fácil secar a pele que a roupa! Por isso, ficavam tão admirados com as minhas galochas. Afinal, o espanto não era por causa da cor. Era mesmo por não ser prático, sob o ponto de vista local. A chuva escorria da capa direitinha para dentro das galochas, ensopando as meias. Rendi-me, ao fim de dois dias, encostei as galochas e voltei aos chinelos.

No final do ano passado, mais de 15 anos depois desta experiência que acabei de relatar, li um livro que recomendo a quem tiver interesse em viagens interiores sob o ponto de vista do budismo. A experiência relatada por este Lama trouxe-me imediatamente à memória a minha própria experiência de aceitação da chuva.

Deixo um excerto para aguçar a curiosidade…

“Tinha acabado de desenrolar a única túnica superior quando começou a chover. Era o tipo de aguaceiro das monções em que parece que os céus estão a descarregar todo o seu peso sobre a terra. Continuei sentado sob o arvoredo. A minha cabeça estava a ser bombardeada. Água escorria-me pelo rosto abaixo. Sentia-a nas orelhas e a gotejar das pálpebras, do queixo para o peito e pela camisa abaixo. A água escorria da nuca para os ombros e corria ao longo da coluna. Sentia comichão nas costas por ter a roupa molhada colada à pele. Em poucos minutos, ficara completamente encharcado. A chuva desaguava sobre mim, enquanto a humidade do chão me envolvia as nádegas. Formou-se uma poça no meu colo, sobre a túnica. Não há nada de que fugir, disse para mim mesmo, nada a evitar, nada de que gostar ou detestar, nada a celebrar ou lamentar. Molhado, seco; feliz, triste; cheiros agradáveis, cheiros desagradáveis. Se permanecer com a consciência, estarei bem.

Estavam mais de 25ºC, mesmo à noite, por isso, ficar encharcado não me faria mal algum. Não estava propriamente como que sentado sob uma tempestade de neve, a ser enterrado vivo. É esta a sabedoria do discernimento. Além disso, já que nunca tinha lavado a minha própria roupa, a túnica estava a ser sujeita a uma boa limpeza.

A partir daí, não me refugiei dentro de portas quando chovia e não regressei à hospedaria para evitar o calor. Continuaria a escolher e a selecionar – entre uma banana ou uma espiga de milho torrado, esta banca de comida ou aquela, mas iria diminuindo as minhas escolhas, especialmente aquelas que diziam respeito a evitar situações.”

Yongey Mingyur Rinpoche, “Amar o mundo”, pág. 204-205

Tashi delek! Até ao próximo episódio das minhas aventuras nos Himalaias!

Revisão: Cecília Maia